Visitantes de longe, muito longe...

Estive em um rápido passeio por Araxá, MG, no último final de semana e aproveitei para passarinhar um pouco pelo parque do Barreiro. É um ótimo lugar para observar aves, com caminhos fáceis e uma grande diversidade de espécies. Em cerca de 3h de passeio, registrei 55 espécies, sendo algumas novas para mim.

Entre as novas, uma que se destacou para mim foi o maçarico-de-perna-amarela (Tringa flavipes), que dividia o pequeno lago ao lado de uma das fontes de água sulfurosa com um socozinho (Butorides striata) e um jaçanã (Jacana jacana).
O motivo da minha atenção ao maçarico em especial não era por alguma beleza incomum ou por ser alguma raridade ornitológica. Nada disso. O que me chamou a atenção nele foi seu mapa de distribuição no guia de campo: aquele "maçariquinho" logo ali na minha frente, que não tinha mais do que uns 25cm, era uma migrante vinda do hemisfério norte! Acho que foi a primeira vez que eu vi, em campo, uma ave vinda de tão longe. Imediatamente fiquei curioso em saber de que terras distantes aquele bicho havia vindo, em que época migrava, que distâncias percorria, etc. Ou seja, já tinha ali mais um "dever de casa" pra depois da passarinhada :-)

Maçarico-de-perna-amarela (Tringa flavipes)
Maçarico-de-perna-amarela (Tringa flavipes), ave migratória oriunda da América do Norte, onde é chamada de Lesser Yellowlegs. Foto: Paulo Ricardo Fenalti

Na verdade, o maçarico-de-perna-amarela não é a única ave que migra de longe até nossas terras tropicais. Todos os anos, mais de uma centena de espécies migrantes de longa distância passam pelo Brasil. Parte delas migra do Sul para o Norte e parte do Norte para o Sul. Em geral, essas migrações ocorrem como resposta à aproximação do inverno na região onde essas aves "residem" (ou seja, onde fazem seus ninhos e procriam).

O maçarico-de-perna-amarela nidifica e se reproduz no Ártico, do Alasca ao leste do Canadá, durante a primavera e o verão no hemisfério norte (outono e inverno no Brasil). Ao aproximarem-se o outono e o inverno e a consequente diminuição dos recursos disponíveis naquela região, suas populações voam rumo ao sul passando pela Baía James, Columbia Britânica, México, Américas Central e do Sul, até a Terra do Fogo. Naturalmente, nem todos os indivíduos vão até o limite sul dessa rota, já que alguns encontram condições mais favoráveis já a partir da América Central e vão ficando pelo caminho. No Brasil, durante a primavera e o verão, é comum encontrar esses maçaricos em áreas úmidas tanto do interior quanto do litoral.

O mapa de distribuição reproduzido abaixo dá uma idéia mais clara do quão grande é esse "fenômeno" da migração.

Mapa da distribuição geográfica de Tringa flavipes
Mapa da distribuição geográfica de Tringa flavipes. Fonte: NatureServe

Nesse mapa, as áreas em vermelho mostram onde o maçarico reside e se reproduz; as áreas em amarelo indicam por onde ele passa durante seu trajeto migratório rumo ao sul, e as regiões em azul mostram os locais habitados pela espécie durante o descanso reprodutivo, que é o caso do Brasil.

Dá pra se ter uma idéia, portanto, que aquele indivíduo que está, no momento em que escrevo, lá no lago em Araxá caçando na água os minúsculos invertebrados de que se alimenta, deve ter viajado cerca de 12 mil quilômetros para estar ali! E em alguns meses, provavelmente viajará outros tantos no seu caminho de volta... Se chegar a viver uns 20 anos, uma ave dessas terá percorrido distância suficiente para chegar à Lua ;-)

E não pense que as viagens dessas aves são tarefa fácil. Muitos são os obstáculos naturais que as aves migratórias enfrentam durante suas viagens, tais como desertos, mares, cadeias montanhosas, tempestades, furacões... Sem contar que, nos últimos anos, diversas barreiras artificiais têm interferido significativamente no sucesso dos fluxos migratórios. Construções humanas como linhas de transmissão de energia, antenas de rádio, tv e celulares, arranha-céus e turbinas de geração de energia eólica são sérias ameaças a essas aves, que morrem ao chocarem-se com essas estruturas. O impacto dessas construções deve ser minimizado através de planejamento prévio para que se evite construí-las em áreas atravessadas pelos fluxos de aves migrantes e em regiões usadas como paradas pelos grupos em viagem.

Turbinas de geração de energia eólica
As turbinas eólicas devem ser instaladas em locais apropriados para evitar impacto sobre os fluxos de aves migratórias. Foto: Wikimedia Commons

Aliás, essas regiões em que as aves podem parar para se alimentar e descansar durante as migrações são talvez o recurso mais importante e mais ameaçado atualmente. Florestas, áreas pantanosas e corpos d'água são particularmente importantes e vulneráveis à degradação provocada por atividades humanas. Aqui mesmo na região do Triângulo Mineiro temos um exemplo: as áreas de covoais (campos de murundus) no chapadão entre Uberlândia e Uberaba (região onde nasce o rio Uberabinha) têm sofrido historicamente com a expansão da agropecuária, silvicultura, e extração de argila refratária.

A migração de aves é um assunto complexo e com muitos desafios aos pesquisadores, e merece ser melhor explorado em um post mais detalhado. Quem se interessar pelo assunto pode se aprofundar consultando sites como o da Born to Travel Campaign (em inglês).

A ideia aqui foi mostrar como a observação de aves pode nos proporcionar a contemplação de verdadeiras "maravilhas da natureza" ao nos colocar diante de fenômenos incríveis como a migração continental das aves, e como essa atividade nos leva naturalmente a reflexões sobre os impactos que as atividades humanas podem ter sobre essa mesma natureza que contemplamos.

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